Uma pesquisa iniciada na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que se tornou referência internacional, está completando 40 anos em 2022. Quando a primeira Coorte de Nascidos Vivos do Brasil foi criada para acompanhar os 5.914 bebês que vieram ao mundo em 1982 no município do sul do Estado, nem os idealizadores imaginavam que ela seria capaz de impulsionar, entre outros atos, a construção de políticas públicas para a saúde de crianças e mães no país e no mundo. Quatro décadas depois, a pesquisa envolveu famílias inteiras e diferentes gerações de pelotenses.
Se no início dos estudos o foco foi direcionado às consequências da desnutrição e à mortalidade infantil, o interesse dos pesquisadores mudou conforme a passagem do tempo, ingressando em questões socioeconômicas, ambientais, de saúde mental, composição corporal e desenvolvimento psicomotor, entre outras. Hoje, cerca de 20 mil crianças, adolescentes e adultos são acompanhados desde o nascimento pelos cientistas da UFPel em quatro grandes grupos de “coortes”.
Coorte é um termo acadêmico que designa um tipo estudo estatístico baseado no acompanhamento de um grupo de pessoas por um período de tempo. O termo é inspirado na expressão que identificava os agrupamentos de soldados que marchavam juntos nas legiões romanas da Antiguidade Clássica. No caso de Pelotas, além de ser a primeira pesquisa do gênero no Brasil, é a maior na América Latina em quantidade de indivíduos acompanhados. E tudo começou com a curiosidade de dois jovens médicos da cidade: o pediatra e epidemiologista Fernando Barros e o epidemiologista Cesar Victora.
No início dos anos de 1980, Barros conta que teve a ideia de fazer um estudo perinatal para saber qual era a mortalidade infantil e quantas crianças nasciam prematuras ou com baixo peso, dados inexistentes à época. Esse levantamento faria parte do doutorado do pediatra, realizado na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, na Inglaterra. Ao compartilhar a intenção com Victora, então também doutorando na mesma instituição, recebeu a ajuda do colega e de John Patrick Vaughan, orientador de ambos.
Inicialmente sem apoio financeiro, Barros montou uma pequena equipe e passou a visitar diariamente as cinco maternidades da cidade, onde todos os recém-nascidos eram examinados. Enquanto desenvolvia o primeiro levantamento, contatava agências internacionais solicitando financiamento. Ele foi contemplado com verba do Centro Internacional para Pesquisas sobre Desenvolvimento, do Canadá, que permitiu completar a primeira fase do estudo. Victora, que havia ganho recursos da Organização Mundial da Saúde (OMS) para pesquisa, direcionou o dinheiro para acompanhar crianças nascidas em 1982. A evolução da pesquisa despertou a atenção de outras organizações internacionais, que contribuíram para sua continuidade.
De porta em porta
Mas como ampliar o estudo, prolongando-o para que envolvesse milhares de entrevistados? No primeiro ano, com os endereços de todas as mães que deram à luz em 1982 nas maternidades de Pelotas, um grupo de pesquisadores que chegou a ter mais de cem integrantes, organizados pelos dois médicos, saiu à procura das crianças. O resultado, no entanto, não foi o esperado.
Como muitas delas viviam em endereços inexistentes no mapa, 17% não foram encontradas. E uma pesquisa de coorte depende, fundamentalmente, de acompanhar um alto percentual de pessoas. Por isso, Victora sugeriu outro tipo de amostragem, mudando radicalmente o caminho do estudo: no início de 1984, os pesquisadores começaram a percorrer todas as 70 mil casas de Pelotas perguntando, uma a uma, se havia crianças nascidas dois anos antes.
– Fomos muito bem recebidos por todos. E conseguimos achar 88% das crianças nascidas em 1982 na cidade. Quando esses pequenos tinham quatro anos, voltamos a bater à porta de todas as casas de Pelotas e encontramos 85% das crianças que nasceram em 1982. Com o tempo, as famílias vão se mudando. Ficamos muito contentes porque o grande problema das coortes, em geral, é essa perda de acompanhamento se não tiver uma estratégia bem estabelecida – recorda Victora.
Os cientistas acreditavam que a pesquisa seria finalizada quando completassem quatro anos de trabalho. Porém, a curiosidade voltou quando os pesquisados chegaram à adolescência. Eles, então, decidiram continuar estudando a turma. Ao mesmo tempo, já reconhecidos internacionalmente, partiram para um novo grupo: a coorte 1993, com financiamento da Comunidade Econômica Europeia. Na sequência, vieram as coortes de 2004 e 2015.
Para que o desenvolvimento desses estudos siga até hoje, outras instituições também contribuíram em anos anteriores, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Programa Nacional para Centros de Excelência, o Conselho Nacional de Pesquisa, o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs). Os estudos atuais continuam sendo levados adiante somente porque os pesquisadores ainda estão usando a verba conquistada há cinco anos, revela Victora.
Há, também, a possibilidade de uma nova coorte ser criada em 2026. Porém, dependerá de apoio financeiro, já que as entidades internacionais que costumavam apoiar a pesquisa brasileira agora voltam seus olhos para países subdesenvolvidos – o que não é mais o caso do Brasil.
Tanto Victora, 70 anos, quanto Barros, 74, têm consciência de que o estudo ocupou mais da metade da vida de ambos.
– Em nenhum momento eu poderia pensar que 40 anos depois continuaríamos acompanhando as mesmas crianças. Esse primeiro estudo alimentou a minha vida profissional – diz Barros, emocionado.
– É um projeto de vida – resume Victora.
Aposentados da universidade, os dois seguem como consultores das coortes e, hoje, atuam em outras frentes. Atualmente, quem coordena os estudos do grupo de nascidos em 1982 é o médico epidemiologista e pesquisador Bernardo Horta, que começou a trabalhar com Victora em 1988.
Epidemiologia e desigualdade
Os dois pesquisadores pioneiros no estudo afirmam que as coortes foram fundamentais para o surgimento, em 1991, do curso de mestrado em Epidemiologia, ligado ao Departamento de Medicina Social da UFPel, que deu origem ao Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia. Seis anos depois, veio o curso de doutorado.
O mesmo grupo foi o responsável pela criação do Centro de Pesquisas Epidemiológicas (CPE), que teve o prédio erguido pela UFPel e foi mobiliado com o financiamento das pesquisas. O CPE conta com equipamentos de última geração para diferentes tipos de exames, como o DXA (Dual energy X-ray Absorptiometry), que avalia a composição corporal, o Bod-pod, que mede a densidade corporal, e o 3D Photonic Scanner, que, a partir de imagem tridimensional do corpo, permite tirar medidas da pessoa.
Entre os estudos que surgiram por meio das coortes, destacam-se dois que, inclusive, transformaram-se em políticas públicas em dezenas de países: a importância do aleitamento materno, comprovando que a amamentação exclusiva tem impacto ao longo da vida, sobretudo entre a população de baixa renda, e a influência dos primeiros mil dias de vida, quando o cérebro e outros órgãos passam por desenvolvimento, o que confirma esse período como fundamental para todo o desenvolvimento da vida de um ser humano.
No livro Epidemiologia da Desigualdade – Quatro Décadas de Coortes de Nascimentos, organizadopor Cesar Victora, Fernando Barros, Mariangela Freitas da Silveira e Antonio Augusto M. Silva, os pesquisadores revisam as tendências em saúde maternal e da criança no Brasil, a partir das quatro pesquisas de coorte em andamento, mostrando que as mudanças observadas no acompanhamento estão alinhadas com análises de dados secundários nacionais.
Eles pontuam que a queda na mortalidade infantil se deu em função provavelmente de mudanças nos determinantes sociais de saúde, com redução na pobreza extrema e melhoras na educação das mulheres, criação de programas de controle e saneamento e as criações de programas de transferência de renda e do revolucionário Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988.
A divulgação das coortes tornou Pelotas referência também no treinamento de novos pesquisadores. Com financiamento internacional, foi possível receber profissionais da América Latina e do Caribe para serem treinados na condução de estudos a serem realizados em outras partes do globo.
O caso de Pelotas mostra o esforço dos cientistas ao longo de anos para manter a pesquisa pulsante num país onde a ciência ainda é renegada por muitos.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/
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