Memória do Furacão Catarina segue viva em moradores

Destruição causada pelo Furacão Catarina no RS e em SC, em 2004 | Foto: Neiva Daltrozo / CP Memória

Há 20 anos, a formação de uma condição climática inédita até então para a região do Atlântico Sul pegava de surpresa moradores da região praiana entre o litoral norte do Rio Grande do Sul e os balneários do sul de Santa Catarina. O furacão, primeiro fenômeno desta classe a tocar no solo brasileiro e chamado de Catarina, recebeu um nome relacionado diretamente com o estado onde mais causou destruição. Em SC, ao menos uma pessoa morreu em solo e outras dez em alto-mar. Mas isto não significa que o RS ficou de fora das consequências de sua passagem.

Em Torres, o tenente Alcindo Kehl, que à época era sargento e comandante de socorro do Corpo de Bombeiros Militar do RS, lembra que a guarnição atuou por cerca de 15 dias ininterruptamente. Ele foi um dos responsáveis pelos relatórios do fenômeno na cidade do Litoral Norte, além de ter atuado na noite do furacão. Em seus apontamentos, ele registrou que 10 pessoas foram encaminhadas com lesões leves para atendimento médico, mais de 1,5 mil famílias ficaram desabrigadas, sendo 1.233 pessoas removidas para abrigos.

Com relação a danos ao patrimônio, tanto público como privado, foram aproximadamente 1,5 mil estabelecimentos comerciais e residenciais, além de estruturas de redes elétricas e hidráulicas, estradas e vias de acesso atingidas. Duas escolas e um posto de saúde foram utilizados como pontos de alojamento para os milhares de desabrigados. Além disso, apenas a guarnição dos bombeiros de Torres recebeu uma média de 243 ligações por hora no dia do fenômeno.

Além dos militares da guarnição, os atendimentos receberam o suporte de efetivo de 15 bombeiros de Tramandaí, cinco de Capão da Canoa e outros cinco de Osório, além de 50 guarda-vidas da Operação Golfinho 2003/2004. Outras 86 pessoas se somaram ao efetivo, advindas das forças policiais, servidores da Prefeitura, pescadores e voluntários.

“A guarnição inicial, que estava comigo naquela noite onde tudo ocorreu, trabalhou sem parar por 15 dias. Nós não queríamos nos afastar do ocorrido. Nossas famílias estavam bem, por isso, nós da primeira guarnição de atendimento ficamos tranquilos para atender quantos dias fossem necessários os que mais precisavam. O pessoal da minha guarnição não queria abandonar o trabalho mesmo eu os dispensando. Eles sabiam o quanto era necessário ajudar a comunidade”, afirmou o tenente Kehl.

Outro relatório, realizado pela Defesa Civil Municipal, apontou R$ 8,4 milhões em prejuízos econômicos (valores à época), com danos principalmente na agricultura e no comércio. Foram contabilizadas 3.036 casas destelhadas parcialmente, outras 199 casas destelhadas parcialmente, 53 construções com danos parciais e 49 imóveis com danos totais. Os bairros mais atingidos foram o Riacho Doce (453 ocorrências) e o São Jorge (411).

Já em Santa Catarina, o estrago foi ainda maior. Conforme um levantamento da Defesa Civil Estadual, foram 33.165 desabrigados e desalojados e pelo menos 78 pessoas feridas. Os prejuízos econômicos à época foram superiores a R$ 850 milhões, com ao menos mais de um milhão de catarinenses sendo diretamente afetados com o furacão, com mais de 33 mil desabrigados e desalojados na região sul de SC.

Morte, destruição e medo no litoral norte no Rio Grande do Sul

A única região do RS que sofreu com a passagem do furacão Catarina foi a área de divisa do Litoral Norte com o sul de SC, principalmente em Torres. Outras cidades menores em um raio de 40 quilômetros também registraram transtornos, mas nada se compara com o que a praia mais ao norte do RS viveu durante o furacão. Houve morte e destruição de milhares de casas. Os danos causados pelo furacão seguem vivos na memória de quem sofreu, assim como o temor de que o fenômeno venha a acontecer novamente.

O único óbito registrado no RS em função da passagem do Catarina ocorreu a menos de um quilômetro do rio Mampituba, a divisa natural entre os dois estados. Aos 61 anos, Calino Teixeira Matos residia em um chalé no bairro Barro Cortado, no distrito de Vila São João. Segundo alguns de seus vizinhos, Calino morava sozinho. O relato deles dá conta de que o senhor teria se assustado com o forte barulho causado pelo vento de cerca de 200 km/h e, por conta disso, decidiu sair da casa e ir em direção à residência de seus vizinhos. Entretanto, o percurso do morador não pôde ser completado.

Apesar de Calino não ter sido atingido por objetos durante o fenômeno, a moradora de Barro Cortado Janice Cezario Ramos, de 53 anos – 33 anos à época –, entende que a morte teve relação com o furacão. Ela recorda que o corpo do morador foi encontrado caído dentro de um galpão no dia seguinte. O laudo, segundo Janice, não constatou ferimentos no corpo: “Eu acredito que ele se apavorou com os estouros e o barulho do furacão e sofreu uma parada cardíaca fulminante”.

A própria casa onde Janice residia à época, em Vila São João, foi duramente atingida. A habitação onde ela mora atualmente, que pertencia aos seus pais em 2004, também sofreu danos com o furacão. E isso resume bem a passagem do Catarina pelo continente: mesmo com quilômetros de distância entre um ponto e outro, o cenário vivenciado foi o mesmo, o de destruição e medo.

Uma das marcas do evento climático na região está na corda que o pai dela atou para tentar colocar uma figueira de volta no lugar depois de a árvore tombar no terreno da família. “Na casa em que a gente morava, coloquei meus filhos escondidos embaixo de uma cama de solteiro no quarto. Quando veio o vendaval, já veio desabando tudo. Não conseguimos dormir naquela noite. Fiquei com medo que a casa caísse sobre eles, por isso reforcei com colchão a cama que eles estavam”, falou.

Luis Carlos Machado, Morador da localidade de Barro Cortado em Torres (RS). | Foto: Ricardo Giusti

Ainda em Barro Cortado, o morador Luis Carlos Machado, de 71 anos, lembra que ficou tão assustado com a força dos ventos que decidiu proteger a filha e o pai dentro do carro da família. “Aquela noite foi horrível. Era vidro estourando, telhado balançando. Era uma escuridão com chuva, e o barulho do vento fazia tudo ficar pior. No outro dia de manhã, quando levantamos, tinha árvore quebrada para tudo que era lado e a estrada trancada”, citou.

Amauri da Silveira, 58 anos, morador da praia do Paraíso. | Foto: Ricardo Giusti

Do outro lado de Torres, a praia do Paraíso também foi duramente atingida. O morador Amauri da Silveira, de 58 anos, se recorda de “encarar” o fenômeno antes de perceber a sua força. Assim como Machado fazia a quilômetros de distância, Silveira utilizou uma mesa para dar mais segurança ao filho. “Eu vi de frente e não quero nunca mais ver algo do tipo. Antes de ele se formar, o céu ficou vermelho. Quando veio, parecia uma bola de fogo. Eu só lembro de colocar meus filhos embaixo da mesa e ficar com eles ali. A casa toda tremia. Aquilo deixou muitas marcas e traumas em todos nós”, contou.

Além de todas suas cores diferentes e suas poderosas rajadas de vento, outro fato chamou a atenção do casal João Batista e Marijane Caetano, 75 anos e 57 anos, respectivamente. Eles lembram que, na casa onde ainda moram, próximo à lagoa do Violão, o vento “fez chover” dentro de casa. Ao usar banheiras de bebê para evitar alagamentos, ambos notaram a surpresa. “A gente colocava o dedo para provar e tinha gosto de sal. Não era chuva, era água do mar que o furacão trouxe para cá”, ressaltou João Batista.

Perto dali, eles lembram que a casa da filha e do genro também foi atingida. O casal e os filhos se protegeram no banheiro, única peça da casa feita de alvenaria, para sobreviver. “A gente ficou segurando as portas e janelas para não quebrar. Enquanto isso, o telhado dos vizinhos voaram. Minha filha gritava para que a gente fosse ali ajudar eles, mas não conseguíamos nem sair de casa. Ficamos com trauma do vento desde então, pois não achávamos que fosse naquela proporção”, completou Marijane.

Outra memória que segue viva em Marijane é da casa onde ela trabalha, no centro de Torres. O apartamento, localizado no 14º andar, teve cadeiras pesadas da sacada jogadas para fora do imóvel. Estes móveis, assim como outros objetos, foram encontrados em uma praça que fica em frente ao edifício.

No mesmo quarteirão, o zelador Anévio dos Santos, de 53 anos, lembra que estava sozinho no prédio onde trabalhava na noite do furacão. Um fato chamou sua atenção na manhã seguinte: a água de uma piscina localizada na cobertura do prédio havia sumido. “Tinha muito barulho, por isso decidi ficar trancado dentro do apartamento. Lembro que tinha uma mesa na sala que a gente usou para se proteger, pois o prédio tinha muito vidro. Tanto que estourou uma janela do oitavo andar e os cacos entraram na nossa sala, estragando os armários e portas. Tinha uma piscina na cobertura e, no outro dia, quando fui conferir os estragos, ela estava seca. A água sumiu”, apontou.

E se para quem estava dentro de um imóvel a situação foi crítica, o que dirá para quem foi atingido em plena estrada. Este foi o caso da comerciante Zenaide Evaldt Hahn, de 52 anos, que voltava de uma festa. O encontro foi realizado durante a tarde na cidade de Mampituba, no RS, distante cerca de um hora de Torres, onde morava. Entretanto, o trajeto de volta iniciou por volta das 22h de sábado e só terminou às 14h de domingo. “Era a festa de noivado do meu funcionário. Pegamos o furacão no meio da estrada. A van que a gente estava, com cerca de dez pessoas, chacoalhava demais. Muitas árvores caíram na estrada. Foi tudo muito feio. Não chegamos a sair de dentro da van pois estava voando galho, telha de casa e muito mais. Lembro da gente parar em um ponto da estrada, perto da casa, e dava para ouvir os gritos de pavor das pessoas. A gente não queria nem olhar para fora da janela”, recordou.

‘Olho do furacão’ ainda se recupera das perdas

Em Santa Catarina, a principal região atingida foi a compreendida entre Passo de Torres e Araranguá. Nesta última, foi registrado o único óbito em terra firme no estado. As outras dez perdas ocorreram com uma embarcação que estava em alto-mar no momento da passagem do furacão. Passados 20 anos, alguns resquícios do Catarina seguem vivos na memória de quem sofreu ou mesmo na estrutura de imóveis.

Mas, com o tempo, estas marcas tendem a sumir – ao menos as físicas. Em Balneário Gaivota, uma das cidades mais atingidas em SC, uma casa ficou por 19 anos com a estrutura danificada após a passagem do furacão. Em junho de 2023, o gaúcho Leili Alberto de Souza da Rosa, de 46 anos, adquiriu o imóvel e, desde então, está reformando aos poucos para morar no local. Ele conta que os proprietários à época teriam abandonado a residência por conta dos altos custos para reformar a casa destruída pelo Catarina.

“Estamos aproveitando a mesma estrutura, mas o telhado tinha ido embora. O que restou estava quebrado, jogado no chão ou com cupim. Não tinha fiação elétrica nem nada. A gente trocou toda a estrutura de madeiramento do teto. É uma construção, pois mesmo que a estrutura tivesse ainda em pé, eu realmente só aproveitei a base da casa, e ainda assim estamos reformulando aos poucos”, citou o novo proprietário.

A reforma é feita por Leili e pelo seu pai, Noé da Rosa, de 73 anos, que mora em outra casa na mesma rua. À época do furacão, ele já possuía imóvel no local. Assim como a casa que seu filho acabou de adquirir, a dele também foi fortemente atingida. Após a passagem das fortes rajadas de vento, restou em pé apenas as paredes estruturais. “Até agora estou procurando a caixa d’água que voou”, brincou Noé.

Já em Passo de Torres, as ruínas de uma casa localizada na avenida Beira Rio seguem como marco da passagem do Catarina pela região. Desde 2004, apenas as paredes do imóvel se mantêm de pé. Entretanto, de acordo com vizinhos do imóvel, a família proprietária do terreno tentou iniciar uma reforma, mas a obra teria sido embargada por ser na costa do rio Mampituba.

Na mesma cidade, Isael Lessa Silveira, de 57 anos, que já havia abandonado a profissão de pescador depois que perdeu amigos no mar, havia aberto um restaurante na beira do rio. Ele também foi um dos idealizadores da base de rádio para comunicação com pescadores meses antes do furacão. “Eu estava no restaurante. Primeiro veio um vento fraco, que foi despertando devagar. Depois, a coisa ficou feia. Era telha voando por tudo. Eu fiquei assistindo de dentro até ele acalmar. Teve um momento que ele deu uma aliviada, que foi quando a cidade ficou dentro do olho do furacão, mas depois despertou de novo. Foi uma destruição total”, recordou.

Depois de conseguir sair do restaurante, Isael foi em busca de notícias da sua casa. “Fui para lá crente de que estaria tudo bem. A minha casa não foi atingida, ela foi destruída mesmo. Não sobrou nada. A minha família estava dentro e eles tiveram a inteligência de se esconder no banheiro. Quando eu cheguei em casa e vi a destruição, fiquei assustado”, completou.

João Batista Cardoso, de 62 anos, é outro morador que teve sua casa atingida pelo furacão. Ele conta que, assim como a família de Isael, também utilizou o banheiro para se proteger junto com o filho. “Quando saí do banheiro, não tinha mais nada. Estou até hoje procurando o que restou da minha casa. Lembro que deram um alerta na TV sobre ventos fortes, mas ninguém ia imaginar tudo aquilo”, apontou.

Operador de rádio avisou pescadores sobre ventos

Amilton Lopes era o operador de rádio na noite do Furacão Catarina e alertou pescadores em alto-mar. | Foto: Ricardo Giusti

Entre as principais perdas relacionadas com o furacão, está o naufrágio de uma embarcação com pescadores, que estava em alto-mar. O advogado Amilton Lopes também atuava como operador da Base de Rádio de Passo de Torres, idealizada por Isael. Ele lembra que, em função dos assustadores relatos vindos de navios que estavam no oceano e dos prognósticos de institutos de meteorologia, ficou praticamente um dia inteiro alertando pescadores que estavam nas proximidades da cidade para buscarem refúgio.

“Tinha muito barco em alto-mar na região, pois era período da safra de corvina e cação. A maioria foi para as ilhas de SC e outras foram para os lados de Tramandaí. As primeiras informações que chegavam de embarcações que estavam bem afastadas da costa era de um vento muito forte. Algo assustador, tanto é que os pescadores estavam chorando. Mas, sinceramente, nem eu acreditava que pudesse ser tudo aquilo que passou.”

Segundo ele, no momento em que o furacão chegou no litoral do RS e de SC, dois barcos ainda estavam no mar. Um deles conseguiu retornar a tempo para o rio Mampituba. O outro, que estaria mais pesado em função da carga recém-pescada, sumiu após perder contato com o continente. “Em determinado momento, ali por umas 20h, cheguei a conversar com eles e alertar, mas depois não ouvi mais e precisei me proteger, pois o telhado da estação foi arrancado.”

Por volta das 23h, a embarcação que se salvou comunicou a ele que o outro barco havia perdido a comunicação horas antes. “Me lembro daquele choro de preocupação e o barulho do vento. Eram pescadores com 30 ou 40 anos de profissão chorando feito criança. Foi o relato mais assustador que vi durante os 14 anos em que atuei no rádio. Durante o dia, pedia bastante para saírem dessa região. Acho que esse foi um dos motivos para não termos mais estragos com embarcações.”

Dificuldade para os bombeiros

Marijane Caetano e João Batista Caetano, de Torres, lembram que o forte vento fez ‘chover’ água do mar dentro de casa. | Foto: Ricardo Giusti

Atualmente, grande parte das cidades e balneários do Sul de SC tem uma corporação de bombeiros militares à espera de atender chamados e socorros, como em Passo de Torres, Sombrio e Turvo. Entretanto, na noite do furacão, existia apenas o batalhão de Araranguá, responsável por cerca de 15 cidades da região. Ao menos dois bombeiros militares que atuaram naquela madrugada seguem trabalhando na corporação: o subtenente Albino João Pedro e o sargento Giovane Stork.

O primeiro estava de plantão. Já o segundo, mesmo de folga, decidiu ajudar depois de presenciar a primeira rajada de vento devastando a cidade. “Eu nunca vi um vento como aquele. Depois que clareou, percebi que estávamos no olho do furacão. Morava perto do quartel, então decidi vir para cá ajudar depois que as coisas em casa estavam seguras. A mulher e o filho ficaram na casa de vizinhos, que eram de concreto. Lembro que o quartel também virou um abrigo naquela madrugada, principalmente acolhendo quem morava aqui perto.”

O sargento Stork auxiliou no atendimento das ocorrências por telefone. À época, os atendimentos dos bombeiros em SC não eram centralizados. Cada quartel precisava dar vazão aos chamados. “Lembro de ter ficado, apenas em uma ligação, mais de 1h30min. Era uma família de Balneário Gaivota. A mulher e o filho tinham decidido se esconder embaixo da cama e a casa caiu por cima deles. Ela não conseguia me informar onde era e não tínhamos gente para ir ao local. A Polícia Militar da cidade acabou atendendo a ocorrência.”

Giovane também pontuou que a estrutura do Corpo de Bombeiros Militar da época, e também o fato de atender uma grande região de SC, impossibilitou que houvesse melhor atendimento das ocorrências, mesmo sendo esta uma situação única na história do Brasil. “Com a condição que temos hoje no quartel e na região, com toda certeza teríamos atendido com excelência a todos os pedidos de ajuda. Mas na época a gente não tinha tanto recurso. Tínhamos, por exemplo, uma Fiat Elba e um GM Chevette como veículos. A ambulância não pode ser usada, pois o vento podia fazê-la tombar. Foi uma situação bem caótica, mas a gente resolveu da forma que deu.”

O subtenente Albino lembra que a preparação para os atendimentos começou ainda durante o dia, quando as informações davam conta de forte ventania na região. “Várias pessoas ligaram assustadas para o quartel, pois não estavam bem informadas sobre o acontecimento. Como foram muitas, a gente decidiu comprar lanternas para não ficar sem iluminação caso realmente viesse algo forte, como acabou se concretizando.”

Depois da primeira onda de rajadas de vento, o balneário de Arroio do Silva foi um dos pontos mais atingidos. “Em um primeiro momento, nos deslocamos para lá, pois havia bastante destelhamento. Não foi tão forte, mas já causou estragos. Aí chegou o olho do furacão, que foi uma calmaria total. Até estrela a gente via no céu. Muitos moradores pegaram o carro para ver os estragos. No fim, eles ficaram presos na estrada em função da queda de árvores, pois a segunda onda foi a coisa mais feia que eu já vi de evento climático na minha vida.”

Segundo ele, não houve local da região que não tenha sido afetado. A BR 101, à época, possuía árvores na beira da rodovia. “Aqueles pinheiros caíram como se fosse um dominó. Nos dificultou até para atender a ocorrência de óbito, pois a gente precisava desviar das árvores e tinha muita folha no asfalto”, lembrou Albino. A morte a que ele se refere foi de Edson Lourenço Quirino, de 44 anos, morador do bairro Sanga da Toca, também em Araranguá.

Durante o furacão, Quirino tentou se proteger dentro do Fusca da família, mas acabou atingido por uma árvore. Sua esposa e seu filho ficaram feridos. Eles precisaram ser retirados do carro por vizinhos enquanto aguardavam a chegada dos bombeiros.

Moradores de outros bairros de Araranguá também recordam com temor daquela noite. Um deles, Eurides Guimarães Pereira, também conhecido como Teixeirinha, por ser trovador e artista de música tradicionalista gaúcha em SC, lembra que viu o telhado de um posto de combustíveis voar e que segurou a porta da sua casa para que as rajadas não entrassem, causando mais destruição. “Nem quero me lembrar muito do que aconteceu. Daqui de casa, foi possível ver todo o telhado de um posto de combustível ser levado pelo vento. O prédio aqui do lado ficou sem o teto. A avenida ficou coberta de telha. Chovia água salgada, que passava guasqueando (batendo) por tudo, mesmo a quilômetros longe do mar. Aqui em casa, o vento levantou toda a armação do telhado, que eu só senti aquele estouro quando caiu, que chegou a desencaixar os canos. Lembro que fiquei segurando a porta da casa com o pé por mais de três horas para não deixar as rajadas entrarem”, completou.

Desconfiança sobre os alertas

Muitos moradores lembram que, durante a semana que antecedeu a tragédia, as informações sobre o que de fato aconteceria eram confusas. Elas iam de ventinhos até rajadas com mais de 100 km/h. Em meio a tanta desconfiança, o engenheiro agrônomo catarinense Ronaldo Coutinho foi um dos primeiros a cravar que aquele fenômeno que atingiria a costa brasileira seria um furacão. Ele cita ainda que o único prognóstico que não se confirmou foi a onda de maré de até 1,5 metro de altura. “A gente viu o furacão já na segunda-feira. Eu lembro de conversar à época com o Alexandre (Aguiar) da MetSul Meteorologia sobre isso. Fomos os primeiros a trabalhar desta forma. Quando vi que os outros canais estavam se enrolando para dizer o que verdadeiramente era, eu me antecipei na quinta-feira anterior, junto com a MetSul, e comecei a falar sobre a previsão”, recordou Coutinho, que trabalha atualmente com a plataforma Clima Terra, em Santa Catarina.

Ele lembrou também da desconfiança com a qual outros veículos trataram a situação. “A imprensa nacional foi um desastre. Ficaram dizendo que não era nada. Estavam minimizando e até zombando de mim. Depois, fiquei sabendo que era medo de provocar pânico. E sendo bem sincero, acho que nós passamos barato. Esperava mais mortes e transtornos. O pessoal não tinha ideia do que estava vindo. Se tu fizer a mesma previsão hoje, a reação da população vai ser totalmente diferente”, finalizou o meteorologista.

De acordo com Coutinho e com informações da MetSul Meteorologia, o Catarina teve um diâmetro de 400 quilômetros, tendo ocorrido entre a noite de sábado, dia 26, e a madrugada de domingo, dia 27. Ele chegou a perder força ao chegar perto do continente, mas, ainda assim, atingiu a categoria 2 da escala Saffir-Simpson, que é usada para definir a intensidade do vento. As rajadas se intensificaram por volta das 22h de sábado. Já na madrugada de domingo, pela 1h, tudo se acalmou, pois a região entrou no chamado “olho do furacão”. Pouco tempo depois, novamente o vento chegou com força, desta vez com rajadas entre 180 km/h e 200km/h. O fenômeno só foi terminar por volta das 5h, deixando um rastro de quilômetros de destruição.

Fonte/correiodopovo.com.br