‘Eles destroem aquele corpo que não os obedece’, diz promotora sobre casos de feminicídio no RS

Dados mostram que 96% das vítimas de feminicídio em 2019 no RS não tinham medidas protetivas de urgência — Foto: João Victor Teixeira/G1RS

Uma sociedade machista pode contribuir para que homens tenham dificuldade em aceitar o fim de um relacionamento, é o que diz a promotora Ivana Machado Battaglin, da Promotoria de Justiça Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Rio Grande do Sul.

“Eles não reconhecem a mulher como uma pessoa. Eles reconhecem aquela mulher como uma propriedade deles, como uma coisa que lhes pertence. Então, quando eles veem que não é uma propriedade, é uma pessoa que tem vontade própria e não obedece mais a vontade deles, eles não suportam essa verdade e exterminam essa mulher. Eles exterminam da forma mais emblemática, geralmente com todas as facadas possíveis, todos os tiros que há na arma”.

“Eles destroem aquele corpo que não os obedece, diz a promotora.

Um estudo recente, divulgado pela Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, mostra que 96% das mulheres que foram vítimas de feminicídio em 2019, no estado, não tinham medidas protetivas de urgência.

“A violência doméstica é um fenômeno bem complexo e nem todas as relações se desenvolvem da mesma forma. Como um padrão, inicia de uma forma sutil e vai crescendo, aumentando a intensidade da violência, diminuindo o espaço de tempo entre uma violência e outra, e a mulher vítima vai naturalizando, achando que aquilo é normal”, afirma a promotora.

Apesar de 42% das vítimas possuírem registro de ocorrência de violência doméstica contra o agressor, apenas 4% possuíam medida protetiva de urgência em vigor na época do crime.

“É importante a medida protetiva em vigor, a criação de um processo, o inquérito, isso ajuda a proteger mais a mulher”, diz a chefe da Polícia Civil do RS, delegada Nadine Anflor.

Dos 97 feminicídios registrados no ano passado no Rio Grande do Sul, 74% deles aconteceram dentro do contexto doméstico e familiar.

“A violência ocorre em ciclos”

Para a promotora, as vítimas passam por ciclos quando estão inseridas em um contexto de agressões.

“Há uma fase da tensão em que a mulher tenta evitar a explosão, fazendo de tudo pra que não ocorra a violência, mas não adianta, mesmo assim ocorre a fase da agressão. Depois, vem a do pedido de desculpas, em que o homem pede perdão, diz se arrepender, promete que tudo vai mudar, que ele vai no psicólogo, vai parar de beber, ele se torna mais carinhoso, volta a ser aquele homem que ela conheceu no início do relacionamento. Só que isso dura um tempo e começa tudo de novo”, explica a promotora.

Especialistas dizem que o ciclo da violência começa a se estreitar com o tempo, de certa forma que o pedido de desculpas do agressor nem ocorre mais, e predominam apenas as agressões. Nesse momento, muitas mulheres tomam a iniciativa de se separar.

“No momento em que as mulheres decidem, conseguem sair do relacionamento, esse é o momento mais perigoso na verdade, quando eu digo isso eu não estou de forma alguma querendo desestimular a romper o relacionamento, o que eu estou querendo dizer é que elas tenham cuidado redobrado, porque a maior parte dos feminicídios acontece exatamente nesse momento”, relata a promotora.

Um exemplo de como alguns homens não aceitam a separação é o caso de Caxias do Sul, na Serra, de novembro do ano passado. Uma mulher foi morta a tiros pelo ex-companheiro após a audiência que tratava da dissolução da união estável do casal.

Segundo a denúncia do Ministério Público, o homem perseguiu a ex-mulher, Ereni dos Santos, de 42 anos, provocou uma batida entre os carros de ambos e disparou contra a ela.

Ele virou réu por crime de feminicídio qualificado por motivo torpe. Ainda não há data para o julgamento. O casal ficou junto por 20 anos. Ereni tinha medida protetiva de urgência contra o ex-companheiro.

Machismo

Segundo Ivana, é importante que se discuta desde a infância sobre a violência de gênero, para que as crianças desconstruam papeis estereotipados.

“Acho bem importante [discutir] a forma como nós estamos educando as nossas crianças, os nossos meninos e nossas meninas, e a naturalização da violência que começa muito cedo”.

Além disso, ela acrescenta que é preciso criar mecanismos para acabar com o alto índice de violência contra a mulher.

“Para que nós possamos cessar os feminicídios, não basta colocar na cadeia os feminicidas que estão matando. Nós temos que pensar o que fazer com os que ainda vão continuar matando, se nós não pensarmos em políticas públicas efetivas para mudar essa realidade.”

Fonte: g1.globo.com