Quatro réus irão a júri sob acusação de homicídio simples, com dolo eventual, contra 242 vítimas. Julgamento deve se estender por cerca de duas semanas
A partir de 1º de dezembro, em exatos 30 dias, o Rio Grande do Sul terá um reencontro definitivo com um dos episódios mais dolorosos e traumáticos da sua história. Os quatro réus pelo incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, irão a julgamento pelo tribunal do júri, em Porto Alegre, em sessão que deve se estender por cerca de duas semanas.
O tempo de debates no júri, a complexidade do caso, o número de vítimas e a carga emocional devem transformar o julgamento no mais longo e emblemático da Justiça gaúcha.
Os sócios da Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor de palco Luciano Bonilha Leão respondem por mais de duas centenas de homicídios simples e mais de seis centenas de tentativas de homicídios.
Eles são acusados pelo Ministério Público (MP) de terem agido com dolo eventual (quando se assume o risco de matar) pela morte de 242 pessoas na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Os quatro ainda respondem pela marca de 636 feridos, abrigados na figura jurídica da tentativa de homicídio.
Um júri tão simbólico, que será presidido pelo juiz Orlando Faccini Neto, está demandando mobilização especial para organização de estrutura e aparato de segurança. O julgamento ocorrerá no plenário do 2º andar do Foro Central I, em Porto Alegre, espaço recém-reformado e que, agora, irá receber novo mobiliário. Há um amplo esquema de segurança em projeção, além de operação para transporte, isolamento e incomunicabilidade de jurados e testemunhas.
— A nossa preocupação maior, por óbvio, está voltada para os aspectos formais, no intuito de dar apoio ao magistrado, presidente do tribunal do júri, para que ele desenvolva o seu trabalho de uma forma tranquila. Temos um ambiente muito favorável, falando em estrutura do Foro Central de Porto Alegre, que foi exatamente feito para isso. O prédio foi aperfeiçoado e dimensionado para situações como essa — afirma o desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Comunicação do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS).
A dimensão do júri da Kiss também é reconhecida como diferenciada pelo MP, que terá dois promotores atuando na acusação dos réus.
— Espero que a gente possa, com esse processo, mostrar à sociedade que fatos como esse não podem se repetir. Eu digo o seguinte: tragédias sempre podem ser evitadas. E essa é uma tragédia que, certamente, poderia ter sido evitada — sustenta a promotora Lúcia Helena Callegari, uma das designadas para atuar no caso.
Com mais de mil júris no currículo, ela admite que jamais enfrentou um de tamanha complexidade e significado. A promotora diz que mostrará durante o julgamento que várias regras eram infringidas na boate, “se acreditando na sorte de que nada iria acontecer”.
Essa é a base da sustentação do MP, a de que os réus abriram brecha, de forma consciente, para o risco de morte na boate a partir dos seus atos. As defesas rebatem, apontando que tratou-se de um acidente, do qual os próprios réus poderiam ter sido vítimas fatais.
— Acordo e durmo com a Kiss do meu lado. Tenho um volume da Kiss na minha cama, sempre. Acaba que toda a minha família se envolve. Se estou com eles, estou vendo vídeo da Kiss, meu filho junto. Quer dizer, não é só eu que estou envolvida. Todas as pessoas ao meu redor estão envolvidas. A minha equipe está totalmente envolvida. Nunca trabalhei num processo com essa complexidade. Nunca trabalhei num processo com tantos depoimentos. Eu tenho 242 vítimas fatais sob minha responsabilidade — reflete a promotora Lúcia.
O reencontro com a tragédia não é só para o sistema de Justiça, mas sobretudo para as vítimas sobreviventes e para os familiares que, desde janeiro de 2013, anseiam por respostas e por reparação. São centenas de vidas que ficaram marcadas para sempre por aquela madrugada em que a boate Kiss estava lotada, sobretudo por jovens universitários, quando um integrante da banda Gurizada Fandangueira brandiu um fogo de artifício no palco, permitindo o encontro entre as fagulhas e a espuma acústica, dando início ao incêndio que mataria 242 pessoas.
Kelen Giovana Leite Ferreira, 28 anos, sobreviveu à tragédia, mas carrega até hoje sequelas físicas e psicológicas. Ela está entre as 636 tentativas de homicídio atribuídas pelo MP aos réus. Kelen teve 18% do corpo queimado, perdeu o pé direito e sofreu comprometimento severo do pulmão, a ponto de necessitar de fisioterapia até os dias atuais. Ela perdeu três amigas no incêndio.
— Mais pessoas deveriam estar respondendo a esse processo e estar lá no dia 1º, mas eu espero que eles (os réus) sejam punidos. Foi uma sucessão de erros que poderia ter sido evitada. E as 242 pessoas poderiam estar aí hoje — lamenta a jovem, que trabalha em um hospital de Pelotas e estará em Porto Alegre para acompanhar o histórico tribunal do júri.
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/
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