
Em poucos minutos, a birra de uma adolescente de 14 anos, que se recusava a sair do pátio e retornar à sala de aula, onde deveria estar, explodiu em violência física. Em 12 de agosto, a vice-diretora da Escola Municipal Morro da Cruz, na zona leste de Porto Alegre, foi empurrada duas vezes pela aluna e agredida com dois tapas no rosto pela mãe da garota.
Atônita, a professora, que atua há quase uma década no local, recebeu chutes da estudante. O episódio, considerado ápice de uma série de conflitos, fez a instituição de ensino, que atende mais 1,1 mil crianças e jovens, suspender as aulas.
O caso, que despertou a atenção nas últimas semanas, não se trata de violência isolada. É o que mostram dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP-RS). Somente no primeiro semestre deste ano, o Rio Grande do Sul registrou 1,5 mil ocorrências de ameaças ou agressões em instituições de ensino.
Desses fatos, 693 são registros por ameaça, 561 por lesão ou lesão corporal leve e 303 de vias de fato (agressões físicas que não deixam lesões visíveis, como puxões de cabelo, empurrões ou tapas).
Quando se recorta somente Porto Alegre, são 256 registros nesse mesmo período. Os registros da SSP-RS, desde 2022, evidenciam pouca alteração no número de casos — com exceção de 2023, quando houve aumento em registros de ameaças.
Nesta semana, outra escola de Porto Alegre decidiu fechar as portas, em razão dos casos crescentes de violência. O Conselho Escolar da Escola Municipal de Ensino Fundamental José Loureiro da Silva, na Vila Cruzeiro, na Zona Sul, emitiu um comunicado na terça-feira (26) repudiando “recorrentes casos de violência contra professoras, professores e estudantes”.
Segundo a nota, a vice-diretora recebeu ameaças do familiar de um estudante. A manifestação informada ainda que “esse não é um caso isolado, a violência só tem crescido na escola”. Uma reunião deve ser realizada no local nesta quarta-feira (27).
Em nota (leia a íntegra no final da reportagem), a Secretaria Municipal de Educação disse que assim que foi notificada, se colocou integralmente à disposição da direção da escola.
Os dados da SSP representam apenas aqueles casos que chegaram ao conhecimento da polícia. A realidade, no entanto, revela que há subnotificação nesse tipo de violência. Somente na Escola Morro da Cruz, desde o início deste ano, foram registrados 745 conflitos envolvendo alunos ou estudantes e professores.
A situação levou o Conselho Escolar a decidir interromper as aulas por um dia, logo após a agressão recente, como forma de despertar reflexão sobre a gravidade do tema. As atividades foram retomadas em 14 de agosto, com restrições de acesso. O portão principal foi fechado e alunos passaram a ser recebidos pelos professores numa entrada lateral, em dois horários, próximos ao início do turno escolar.
Antes, os pais e responsáveis tinham livre acesso ao pátio da escola. Os professores reivindicam, ainda, que seja implementado serviço de portaria.
— Quem está garantindo esse controle somos nós, não recebemos mais efetivo de professores — reclama o presidente do Conselho Escolar, Marcelo Castanho.
Quem fica tem medo
Professor de séries iniciais, assim como a colega, Marcelo Castanho já passou por situação de violência na escola. No caso dele, o episódio envolveu uma ameaça de um adolescente, que foi registrada na polícia.
— Foi algo muito parecido. Alunos que não queriam ficar dentro da sala de aula, tensionei para eles voltarem. Me empurraram, porque ficaram naquele entra e sai. Quando eu não permiti que passassem, veio aquilo: “Vou contar para o meu pai e ele vai te pegar” — afirma.
Fiz o registro, sem representação. Fiquei na escola de teimoso. Tivemos outros colegas que saíram da escola, justamente por se sentirem ameaçados, ou por terem briga com algum estudante. Isso está errado. A gente tem que ter um pouco mais de segurança.
MARCELO CASTANHO
Professor da Escola Municipal Morro da Cruz
Professora na Escola Morro da Cruz, uma educadora que também já foi alvo de violências e prefere não ser identificada, relata que os conflitos se acentuaram após a pandemia da covid-19 e a enchente que atingiu o Estado, em maio de 2024:
— Se perdeu, de alguma forma, a organização da rotina escolar. Essas sequelas, como da enchente, se tornaram evidentes dentro da escola. Mais do que nunca, a escola precisa do serviço de orientação escolar. É o coração da escola. Ter mais pessoas trabalhando ali, com formações específicas. A gente precisa também de campanhas que fortaleçam o papel da escola e a figura do professor. Ele precisa ser um profissional valorizado nessa sociedade.
Em nota, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) informou que esteve na Escola Morro da Cruz, onde conversou com os professores sobre questões relacionadas à segurança. Ainda conforme a pasta, a Comissão Interna de Prevenção a Acidentes e Violência Escolar (Cipave) e o Conselho Tutelar foram acionados para mediar a situação com a família da estudante.
Risco em especial às mulheres
Os sindicatos que representam os profissionais que atuam na rede municipal e estadual percebem com preocupação a incidência de violência escolar. Neiva Lazzarotto, do 39º Núcleo do Cpers, sindicato que representa os profissionais da rede estadual de educação, de Porto Alegre, ressalta que há um adoecimento da categoria.
Há um crescimento muito grande de medicamentalização e licenças-saúde, em razão da natureza do trabalho, da desvalorização. Cada vez mais exigências, sem condições, e mais situações também de violência que se acumulam, inseguranças.
NEIVA LAZZAROTTO
39º Núcleo do Cpers
— Assim como na sociedade tem situações crescentes de violência, elas se refletem dentro da escola. Tivemos um caso recente em que foi chamada a a atenção de uma estudante, foi chamada a mãe, a mãe ficou indignada com a diretora, e a irmã da estudante acabou agredindo a diretora. Bateu a cabeça dela na parede — diz Neiva.
Diretora do Sindicato dos Municipários (Simpa) de Porto Alegre, Bete Charão diz que a instituição tem recebido relatos frequentes na Capital. Um dos pontos criticados pelo sindicato é a adoção de medidas que envolvem a transferência do professor, após algum episódio de agressão ou ameaça, o que, no entendimento da entidade, não resolve o problema na origem.
— Muitas vezes esse colega, professor, monitor, está há anos na escola, tem todo um trabalho, toda uma relação, mesmo afetiva, com essa comunidade. Vai chegar um momento em que os profissionais não vão querer trabalhar nessas escolas — lamenta.
As escola da rede municipal da Capital reivindicam ainda que seja implementado um protocolo atualizado, para que os profissionais saibam como agir nesses casos.
— Uma das questões que nós pedimos é a volta da Guarda Municipal desarmada. Antigamente, havia todo um protocolo, inclusive, de cores dentro da escola para identificar esses casos — diz Assis Brasil Olegário Filho, também diretor do Simpa.
Outro ponto levantado pela categoria é o fato de que as agressões que envolvem violência física muitas vezes são direcionadas às mulheres que atuam na educação.
Existe muita agressão verbal para professor. Mas, quando é agressão física, quem apanha, na maioria das vezes, são as mulheres. São monitoras, são professoras, são vice-diretoras. Quando é com uma mulher, não se tem tanto pudor em ser uma agressão física.
BETE CHARÃO
Diretora do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre
Prevenção e mediação de conflitos
Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Seffner realiza rotineiramente um estudo de etnografia das cenas da vila escolar. Em razão disso, acompanha a rotina nas escolas da Capital, observando aspectos que envolvem conflitos e gênero. Na visão do especialista, é essencial olhar para as conflitualidades dentro do ambiente escolar, como forma de tentar evitar que esses casos evoluam para violências mais graves.
Existem conflitos envolvendo piadas racistas ou homofóbicas, ou então, situações de assédio. Há ainda conflitos que existem no entorno do bairro, que se transferem para dentro da escola. Há escolas aqui em Porto Alegre que estão numa região limite de domínio de facções, e as crianças estudam na mesma sala de aula. Então, há uma questão também que os conflitos do entorno, que vêm habitar dentro da escola.
FERNANDO SEFFNER
Professor na pós-graduação em Educação da UFRGS
Segundo o Censo Escolar de 2024, foram contabilizadas 47,1 milhões de matrículas nas 179,3 mil escolas de educação básica no Brasil. O professor ressalta que esses dados demonstram que há uma grande concentração da população de crianças e jovens no ambiente escolar, o que também é um fator que impacta nos conflitos:
— Há uma desatenção das políticas públicas para o fato de que a escola tornou-se um lugar de grande concentração de crianças e jovens. A escola é um lugar de segurança alimentar, de acesso à internet, de convívio com os outros. Mesmo com todas essas agressões, é um lugar muito seguro na comparação com os outros lugares que as crianças podem andar.
No entendimento do professor, limitar o olhar aos casos mais severos, quando a violência já aconteceu, é pouco efetivo. Entre as medidas sugeridas pelo especialista para evitar que os casos se agravem, estão a necessidade de reforço da presença de profissionais de serviço social dentro das escolas, levando em conta a realidade onde vive aquela comunidade, e a mediação de conflitos.
— Estudos nos Estados Unidos mostraram que o mais efetivo mesmo são as atividades e tarefas que identificam os conflitos, e não depois que o leite está derramado, sair correndo com o pano para ver quem seca mais ligeiro. Há pessoas que têm iniciativas de mediação de conflitos, mas são muito pequenas, muito restritas, e elas caem em cima de pessoas já sobrecarregadas — afirma.
“Ela enfiou a faca na minha mão”
Na última semana, outros dois casos de violência dentro de escolas no Estado despertaram a atenção. Num deles, na Escola Municipal de Ensino Fundamental João Rodrigues de Souza, em Caseiros, no norte do Estado, uma aluna de 14 anos atingiu uma professora com um golpe de faca na mão, dentro da sala de aula, na manhã da última quinta-feira (21).
— Estava escrevendo na lousa e, quando virei de volta para a turma, ela estava atrás de mim. Nessa hora, ela me enfiou a faca na mão. Ela tentou me acertar de novo, mas eu disse que ia chamar a polícia e ela recuou. Então saí da sala e fui até a direção, com a mão sangrando — contou a docente, que preferiu não ser identificada.
As aulas foram suspensas na escola e retomadas após a escola adquirir um detector de metais manual, que será operado por um guarda contratado para fazer a segurança na entrada da escola.
Já em Caxias do Sul, na Serra, uma professora da Escola Infantil Xodó Da Vovó, foi gravada por câmeras de segurança agredindo um menino de quatro anos. A mulher foi presa de forma preventiva. O garoto, que foi atingido com uma pilha de livros, teve ferimentos na boca e perdeu um dente.
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