Registrada pela primeira vez em 1985, na triticultura paranaense, a doença fúngica surge em regiões nas quais sua presença é inesperada, como é o caso do Rio Grande do Sul, e pode diminuir em 13% a produção mundial do grão

Conhecida na China desde 1600 como uma ameaça à orizicultura, a brusone tornou-se uma preocupação mundial para as lavouras de trigo. Registrada pela primeira vez na triticultura paranaense, em 1985, a doença fúngica já se manifestou em outros quatro estados brasileiros, incluindo o Rio Grande do Sul, além do Distrito Federal, avançou para mais quatro países sul-americanos, e se fez presente, com sérios danos, em Bangladesh, na Ásia, e em Zâmbia, na África. A mais recente ocorrência fora do Brasil se deu no Uruguai, no ano passado.
De acordo com o estudo científico Production vulnerability to wheat blast disease under climate change (Vulnerabilidade da produção de trigo à brusone sob mudanças do clima), publicado na revista Nature Climate Change, o fungo tem potencial para afetar 13,5 milhões de hectares e risco de reduzir em 13% a produção mundial de trigo. O fungo causador da doença é o Pyricularia oryzae Triticum. O organismo ataca folhas e espigas, com danos que podem comprometer até 100% do rendimento no trigo. Seu desenvolvimento ocorre principalmente em regiões de altas temperaturas e umidade, condições presentes em países de clima tropical e subtropical. O surpreendente, agora, é o aparecimento em áreas de clima frio ou mesmo com baixa umidade. Em 2023, pela segunda vez (a primeira foi em 1988), o fungo prejudicou a produção gaúcha de trigo, no mesmo ano em que se fez presente no Uruguai.
“A brusone não era esperada aqui, mas ocorreu no ano passado, com um inverno muito leve, em que as temperaturas mínimas ficaram de dois a cinco graus acima do normal. Ela já acontece há muito tempo no Brasil central, no norte do Paraná, mas em regiões frias, como aconteceu em 2023, foi bastante preocupante”, avalia o pesquisador da Embrapa Trigo José Maurício Fernandes.
Em 2024, de acordo com Fernandes, só houve um caso isolado no Rio Grande do Sul, em Santa Rosa. “Estamos monitorando bem de perto o clima. O inverno deste ano foi mais frio do que em 2023. Ainda assim, a maioria dos dias foi de temperaturas dentro do que a brusone teria possibilidade de ocorrer”, afirma o pesquisador, que confirma a necessidade de “acender uma luz amarela, um alerta” para investimentos em cultivares mais resistentes à doença.
Tais cultivares já existem, conforme Fernandes, mas não são imunes à patologia. O pesquisador explica que a ameaça é “uma coisa nova para a cultura do trigo”. “O trigo, na sua evolução, não havia convivido com esse patógeno. Então, a vulnerabilidade do germoplasma mundial é enorme, 99% dos materiais são suscetíveis”, salienta. Atualmente, as amostras mais resistentes já identificadas são de espécies ancestrais da gramínea.
No Estado, a preocupação com o avanço do fungo tem variações de intensidade. Para Hamilton Jardim, coordenador da Comissão de Trigo e Cereais de Inverno da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul, trata-se de um perigo pontual, com muito menor possibilidade de afetar a triticultura gaúcha do que a giberela ou que o oídio, bem mais conhecidas na região. Alencar Rugeri, agrônomo e especialista em grãos da Emater/RS -Ascar, admite a apreensão, mas considera que não “tem nada de excepcional” no aparecimento da brusone no Estado. Assim como Fernandes, Rugeri lembra que a doença, assim como a giberela, é de difícil controle.
A dificuldade de controle é destacada também pelo engenheiro agrônomo Gilberto Bortolini, coordenador da área de produção vegetal da regional administrativa da Emater em Ijuí. Foi na área de atendimento desta regional, que soma 44 municípios, que a brusone e a giberela comprometeram 20% do potencial produtivo dos 800 mil hectares dedicados ao trigo em 2023. Rugeri e Bortolini concordam que, ao contrário do que ocorre com a giberela e o oídio, o enfrentamento contra a brusone é uma novidade para o agricultor. “Oídio qualquer produtor conhece. Ferrugem também. A brusone, no entanto, não é tão comum”, afirma Rugeri. Brusone | Foto:

Gramínea é sequestradora de gases
Pesquisa realizada da Embrapa Trigo e da UFSM comprovou que o trigo absorveu da atmosfera 7,54 mil quilos de CO2 por hectare, neutralizando emissões nos períodos de pousio
A produção de grãos no Rio Grande do Sul é sustentável, garante o engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Trigo Genei Dalmago. Segundo ele, os resultados de um estudo desenvolvido pela empresa de pesquisa em parceria com a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), comprovou que o trigo é capaz de sequestrar mais carbono do que emite para a atmosfera. De acordo com o trabalho, em um ciclo produtivo no sistema de plantio trigo-soja, a gramínea absorveu da atmosfera um total de 7.540 quilos de dióxido de carbono (CO2) por hectare, neutralizando as emissões dos períodos de pousio, e garantindo a oferta líquida de 1.850 quilos de CO2 por hectare.
“A produção de grãos no Rio Grande do Sul é, sim, sustentável”, diz Dalmago, comentando os números resultantes de um ano de acompanhamento de lavoura dos dois tipos de grãos, com os respectivos períodos sem plantas de cobertura do solo ou cultura geradora de renda, sob a forma de forragem ou produção de grãos. “A pesquisa mostra que nossos agricultores não só reduzem a emissão de carbono. Eles fazem muito mais do que isso. Os nossos produtores rurais fixam carbono”, acrescenta.
Para realizar o estudo, foi instalada uma torre de fluxo, em uma lavoura de grãos, em Carazinho, no norte do Rio Grande do Sul. O equipamento é utilizado pela universidade federal para avaliar a emissão de gases de efeito estufa desde a década de 1990. O objetivo foi examinar as diferenças entre emissão e retenção de carbono no sistema trigo-soja, quantificando os fluxos de CO2 em lavoura comercial de grãos.
A torre de fluxo capturou informações capazes de identificar o balanço de carbono em cada etapa do sistema de produção ao longo do ano. A pesquisa envolveu dez profissionais de diferentes segmentos, como engenheiros-agrônomos, físicos, matemáticos e profissionais da ciência da computação.
A professora Débora Roberti, do departamento de Física da UFSM, observa que a torre de fluxo oferece resposta rápida sobre os trânsitos de gases, gerando uma sólida base de dados no intervalo de um ano. A aquisição de uma torre de fluxo pode chegar a 180 mil dólares. Outras técnicas de campo demandam períodos mais longos para proporcionar o mesmo resultado. “O método que utilizamos ajudou a estabelecer parâmetros para orientar o manejo mais eficiente das áreas agrícolas na retenção de carbono, em prol de um sistema de produção de grãos mais sustentável”, explica Débora, lembrando que as informações geradas podem chegar ao produtor de forma prática.
A torre de fluxo foi instalada em uma lavoura de grãos, conduzida sob sistema de plantio direto, semeada com trigo no inverno e com soja no verão. O balanço de carbono foi registrado em cada etapa do sistema de produção, abrangendo o cultivo do trigo, o pousio de primavera (entre a colheita do trigo e a semeadura da soja), o cultivo da soja e o pousio de outono (após a colheita da soja até a entrada da cultura de inverno). Para avaliar o balanço de CO2, a pesquisa considerou a retenção no sistema de produção e a emissão para a atmosfera, descontado o carbono que foi exportado nos grãos colhidos.
O balanço de carbono em cada etapa da produção de grãos, após descontada a quantidade extraída pelos grãos na colheita, mostrou que o trigo incorporou no sistema 5,31 gramas de CO2 por metro quadrado ao dia. A soja, 0,02 g, ou seja, praticamente zero. Os dois períodos de pousio emitiram 16,8 g (veja o quadro). Os resultados da pesquisa apontam ainda os impactos negativos do pousio no sistema de produção de grãos em relação à emissão de dióxido de carbono.
Dalmago alerta, porém, que existem alternativas para reduzir ou eliminar o pousio entre as culturas no outono, como plantas de cobertura, plantas para produção de grãos ou, ainda, para a produção de forragens. “Os períodos de pousio devem ser cultivados com algumas espécies. Mesmo que essas espécies não tragam retorno econômico imediato, elas propiciariam a fixação de carbono dentro do sistema”, prevê. Carbono | Foto:
A importância do sistema de produção do trigo
Dalmago salienta que a capacidade descarbonizante do trigo deve ser avaliada dentro de um sistema de produção. “O trigo, sem o sistema de produção dele, é apenas uma cultura. É difícil enxergar os benefícios da cultura quando tratada isoladamente”, explica. Inserida no contexto de plantio que envolve a soja, o trigo tem a propriedade de fixar mais carbono pela sua característica morfológica. “É uma gramínea, tem os aspectos da relação carbono e nitrogênio, que proporcionam a presença de mais carbono do que nitrogênio para a cultura”, detalha.
Para o pesquisador, o grande diferencial do trigo é sua capacidade de desenvolvimento num período de baixas temperaturas. “A condição climática na qual o trigo é cultivado no Rio Grande do Sul beneficia o processo”, diz. Sob as baixas temperaturas, também ocorre uma considerável redução da atividade microbiológica do solo, o que contribui para menor emissão de CO2 para a atmosfera.
Conforme Dalmago, o desempenho da soja no processo é neutro. No período inicial de desenvolvimento da oleaginosa, há uma emissão maior de carbono. Isso decorre, no entanto, da decomposição do particulado (resíduo no solo) deixado pelo trigo. “Por isso que não dá para olhar a cultura de maneira isolada. É preciso olhar no formato de um sistema. Senão, eu culparia a soja, no início, quando, na realidade, é um processo decorrente da cultura anterior. No nosso caso, é o trigo, mas poderia ser uma outra cultura”, afirma o engenheiro agrônomo.
Por fim, o pesquisador da Embrapa aponta a necessidade de compreender a variabilidade do sistema, em razão das condições meteorológicas. No caso do Rio do Grande do Sul, isso inclui desde ciclos de estiagem severa a chuvas e enchentes catastróficas, como as que ocorreram em abril e maio. “Então, temos anos diferenciados na atividade de fixação de carbono. A compreensão de como isso varia nos dará capacidade de adaptar tecnologia, a capacidade de desenvolver tecnologia para esse ambiente de alto risco, sim, mas com enorme potencial para produção agrícola sustentável”, acrescenta Dalmago.
Dióxido de carbono é fundamental à fotossíntese
Ações de manejo são imprescindíveis para fixação do gás no solo, oferecendo ainda benefícios como aumento da fertilidade, equilíbrio hídrico da terra e ganhos na produtividade e no combate às doenças trigo maduro | Foto: Josiani Mesquita Antunes/Embrapa/Divulgação/ CP
Forma gasosa do carbono, o dióxido de carbono, ou CO2, é indispensável à fotossíntese, o processo botânico que promove o crescimento da biomassa e a formação de frutos ou grãos. Na fotossíntese, a planta absorve carbono e libera oxigênio para a atmosfera. Contudo, durante o desenvolvimento, as plantas também liberam carbono, principalmente no período noturno, quando respiram mais e não há luz para fazer a fotossíntese.
Soma-se a isso o processo de decomposição de resíduos agrícolas. Embora dependente de fatores ambientais, de solo, de manejo e da composição, a degradação dos particulados é responsável por quantidade significativa das emissões do dióxido.
Liberado para a atmosfera, o CO2 soma-se ao metano e ao óxido nitroso, gases que causam o efeito estufa, uma barreira que impede o resfriamento do planeta. No Brasil, a agropecuária é considerada uma das principais fontes de gases de efeito estufa, com cerca de 27% das emissões do país, segundo levantamentos recentes do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa.
Daí a necessidade, conforme o pesquisador da Embrapa Trigo, Genei Dalmago, das ações de manejo para fixação de carbono, evitando os períodos de pousio, sem cobertura do solo.
“Parte do carbono vai ser fixado pelas raízes, sob o solo, e parte do carbono fica na palha, sobre o solo. As raízes são importantes e a palha também é importante. A palha cumpre funções diferenciadas daquele carbono que está dentro do solo. Se mantivermos o solo cultivado 365 dias por ano, haverá sempre uma cobertura de palha”, afirma Dalmago. O equilíbrio, de acordo com ele, depende ainda da identificação das plantas adequadas para o cultivo anual.
A longo prazo, a fixação do carbono proporciona outros benefícios além de reduzir a emissão de um dos gases do efeito estufa. Dalmago exemplifica as vantagens citando o aumento da fertilidade do solo e de sua capacidade de absorção hídrica. “Infiltrando mais água, vamos reduzir o impacto das grandes precipitações. Fixar carbono no solo significa aumentar a capacidade produtiva, aumentar a resiliência, oferecendo maior potencial às plantas para combaterem doenças. Isso repercute no uso mais racional de insumos”, diz.
A presença da palha, o resíduo da lavoura, sobre a superfície, reduz a evaporação de água, atuando como uma proteção nos períodos de estiagem. “A palha mantém o equilíbrio na temperatura do solo. Isso facilita que a microbiologia atue de maneira mais positiva para as plantas. É um conjunto grande de relações que precisa ser mantida. Por isso precisamos de cada vez mais ciência. Assim vamos gerando mais consciência”, conclui Dalmago.
A pesquisa desenvolvida por Embrapa Trigo e Universidade Federal de Santa Maria sobre a fixação de carbono, no sistema de produção de grãos, envolve ainda aspectos econômicos e geopolíticos. Ao reter o dióxido de carbono, os agropecuaristas gaúchos estariam em condições de estabelecer um novo posicionamento do Rio Grande do Sul diante de normativas ambientais. Para tanto, é preciso investir em tecnologias capazes de aprimorar o sequestro de carbono, tanto por meio de florestas plantadas quanto, principalmente, na atividade agrícola.
“É dentro desse objetivo que a nossa pesquisa fez uma importante descoberta, pois, além de ter demonstrado que o trigo sequestra mais carbono da atmosfera do que emite, obtendo assim a nobre função de acumular carbono, também apresentou o vilão do sistema de produção, que é o pousio, prática agrícola que aumenta a emissão de carbono para a atmosfera”, avalia o pesquisador da Embrapa Anderson Santi.
Para Genei Dalmago, colega de Santi, a fixação do carbono constitui uma solução qualitativamente superior à redução de carbono. “Quando trabalhamos mais na redução de carbono, estamos, de certa forma, atribuindo uma responsabilidade muito grande ao início da cadeia produtiva. Os agricultores têm de receber os insumos já com carbono zero, com o carbono já contabilizado. De que forma? Via aquisição de crédito de carbono, via mercado de carbono”, diz Dalmago. “O nosso produtor rural fixa carbono. O que é muito mais importante do que apenas reduzir emissões”, ressalta.
O mercado de compra e venda de créditos de carbono ainda está em regulamentação no mundo, mas a partir do Protocolo de Kyoto, firmado em 1997, a redução das emissões de gases do efeito estufa passou a ter valor financeiro. Quem reduz emissões pode vender créditos de carbono aos países que emitem mais gases.
Em vigência no Brasil desde 2009, a Lei 12.187 estabeleceu a Política Nacional sobre Mudança do Clima. O texto normatiza o compromisso do país junto às Nações Unidas para a redução de emissões de gases do efeito estufa.
Ainda assim, a negociação de créditos de carbono permanece sem base jurídica definida no território nacional, o que não impede que empresas e instituições pratiquem a atividade por meio de um mercado voluntário do setor. De acordo com Santi, o Projeto de Lei 528/2021, que regulamenta o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões, estabelece equivalência de um crédito de carbono igual a uma tonelada de CO2. O valor hipotético é estimado em 10 dólares por crédito de carbono, ressaltando que ainda não há mercado consolidado para essa transação no país, somente inferências sobre valores.
Para Dalmago, a pesquisa desenvolvida pela Embrapa e Universidade de Santa Maria, demonstra a suposta injustiça de questionamentos ambientais sobre a produção agrícola gaúcha, afirmada como agressiva ao meio ambiente. “Isso não é verdade. Nossos resultados demonstram o contrário. Mostram que aqui, no Estado, a gente faz uma agricultura sustentável”, diz. Dalmago faz a ressalva da variabilidade em razão das condições climáticas, determinantes para a eficácia do sequestro de carbono. “Mesmo assim, existe um potencial muito grande para uma agricultura sustentável. Estamos apresentando números para demonstrar isso para o resto do mundo. Podem comprar o nosso alimento, as nossas commodities, porque aqui se fixa carbono. E carbono é a molécula central da sustentabilidade”, diz o pesquisador.
Fonte: www.correiodopovo.com.br
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